A desvalorização do real, embora desagradável, é parte da estratégia do governo para estimular a volta dos investimentos internacionais e o crescimento
Por Machado
da Costa

FRUSTRAÇÃO - Compras nos Estados Unidos:
preços elevados diminuem o ímpeto dos brasileiros (Al Diaz/Miami
Herald/Tribune News Service/Getty Images)
Uma máxima entre os
especialistas em finanças diz que ministro da área econômica não opina sobre
dois assuntos: câmbio e taxa básica de juros. A resposta à quebra dessa regra
draconiana vem pela mão pesada do mercado, que entra em ação para lembrar que
não existe um pronunciamento correto nesse assunto — o correto é não falar. O
ministro da Economia, Paulo Guedes, na segunda-feira 25, deu um recado aos
brasileiros preocupados com a recente alta do dólar. Em resposta a um
jornalista em Washington, Guedes disse: “É bom se acostumar com câmbio mais
alto e juro mais baixo por um bom tempo”. Imediatamente, a moeda brasileira
encolheu quase 2% e o dólar fechou em 4,24 reais, o maior valor nominal desde
1994. No dia seguinte, a moeda americana abriu o mercado em 4,27 reais,
encolheu um pouco de valor e fechou na quarta em 4,26 reais, cravando outro
recorde nos 25 anos de existência da moeda brasileira. Tal oscilação é
alarmante para todos os brasileiros que pretendem viajar para o exterior ou que
fizeram compras em moeda americana em seus cartões de crédito. Como o cálculo
de câmbio leva em conta taxas de transferência de divisas, impostos, além das
margens de corretagem dos agentes financeiros, é bem provável que o valor de
conversão para as operações feitas na última semana chegue bem perto de 5
reais. Ou seja, quem comprou um iPhone 11 nos Estados Unidos no crédito por 700
dólares no fim de outubro vai pagar por volta de 3 500 reais na fatura — quase
200 reais a mais do que se o valor de conversão fosse o do dia da compra.
Por mais dolorosa
que possa parecer, a frase de Guedes faz sentido e funciona como uma espécie de
aviso para quem tem esperança de encontrar câmbio mais favorável na temporada
de férias daqui a um mês. E mais: pela primeira vez desde a criação do real, a
atual disparada do dólar, na verdade, pode ser uma boa notícia para o país. O
plano de Guedes é manter o dólar mais caro e a Selic mais baixa por um período
longo. Isso vai estimular investimentos em infraestrutura e dar fôlego às
indústrias exportadoras. Com esse arranjo, o governo pretende que os especuladores
internacionais que hoje operam no mercado deem lugar a investidores
interessados em aplicar recursos em infraestrutura, produção de bens e no setor
de serviços. Como resultado, Guedes espera um maior impacto positivo no PIB e
um processo de crescimento mais sustentável — sem o chamado voo de galinha.
Entre se preocupar com os desejos da classe média, que gosta do real valorizado
para fazer compras em Miami, e as necessidades do setor produtivo, que precisa
ganhar competitividade para impulsionar as exportações com uma moeda mais
baixa, o ministro da Economia deixou claro qual é a sua opção.

ALARME – O ministro Paulo Guedes:
declaração desajustada assustou o mercado (Olivier Douliery/AFP)
Mesmo que seja uma
aposta deliberada da equipe econômica, a alta do dólar exigiu uma ação incisiva
do Banco Central (BC) para que a situação não fugisse ao controle. A saída de
investidores estrangeiros do país nos últimos meses e a redução no fluxo de
investimentos internacionais transformaram a volatilidade cambial em uma
preocupação constante dos técnicos responsáveis pela política monetária
brasileira. Em agosto, o BC já havia promovido um leilão da moeda americana que
injetou 1 bilhão de dólares no mercado para conter a alta — e isso quando a
cotação estava em 4,12 reais. Na semana passada, antes da declaração de Guedes
nos Estados Unidos, a notícia de que o déficit nas transações correntes, em
outubro, foi de quase 8 bilhões de dólares — bem acima das expectativas — já
havia acendido o sinal de alerta.
Na terça-feira 26, o BC decidiu despejar 2 bilhões de
dólares nos bancos em um intervalo inferior a seis horas, para acalmar a súbita
procura pela moeda americana e conter sua valorização. Foi a maior intervenção
no mercado à vista de câmbio (ou seja, em dinheiro vivo, e não em contratos
promissórios) desde fevereiro de 2009 — quando se vivia o auge da crise
econômica global, deflagrada pela quebra do banco Lehman Brothers, em setembro
de 2008, nos Estados Unidos. “Este é o pior novembro em muitos anos, com o
mercado especulando em cima de highlights e de declarações sem
fundamento”, afirmou o presidente do BC, Roberto Campos Neto. Traduzindo do
economês, o que Campos quis dizer é que há uma reação exagerada a opiniões que
não refletem a realidade da economia brasileira, instigada por aproveitadores
em busca de ganhos vultosos em operações de curto prazo.

CUSTO ELEVADO – O setor de aviação: um
dos que sofrem com a queda do real (Ueslei Marcelino/Reuters)
O fato é que, mesmo
com as intervenções do BC, devem ser mantidas as perspectivas de desvalorização
do real a longo prazo. O dólar está mais caro por vários fatores. Um deles é o
desempenho econômico dos Estados Unidos. O país avança mais rápido do que
outras nações — incluindo as europeias. A economia americana cresce pelo 11º
ano seguido, gera 150 000 empregos por mês, apresenta a menor taxa de desemprego
em cinquenta anos e tem inflação baixa, em nítido contraste com outras regiões
do mundo, principalmente a conturbada América Latina — onde, quando existe
crescimento, é pífio.
Por outro lado, o
Brasil não parece ter a preocupação de se demonstrar um porto seguro para os
dólares vindos de fora. A demora do governo de Jair Bolsonaro em seguir com a
agenda de reformas, as constantes crises palacianas e o temor de instabilidade
social e política são sinais de alerta para quem observa o país do exterior.
“Existia uma confiança de que era só aprovar a reforma da Previdência para
começar a chuva de dólares no Brasil”, diz o economista Gino Olivares, do
Insper. “O país ainda tem condições de se posicionar de forma mais atraente e
se tornar um caso de sucesso em 2020, mas o governo precisa agir para que isso
ocorra.”

EXPORTAÇÕES – Fábrica da Volkswagen no
Paraná: competitividade global (Pedro Danthas/.)
A aposta do
ministro da Economia desagrada particularmente a uma parcela de brasileiros que
acreditava que o dólar ficaria estabilizado entre 3 reais e 3,50 reais, uma das
promessas de Bolsonaro. A engenheira Bianca Oliveira, de 31 anos, viajou para
os Estados Unidos justamente na terça em que aconteceu o estouro do câmbio. Sua
intenção era aproveitar as promoções da Black Friday em Nova York. “Tinha me
planejado para essa viagem adquirindo, mês a mês, uma determinada quantia de
dólares. De certa forma garanti o básico com isso, mas as compras, que costumo
fazer no cartão, vão ficar para outra ocasião”, diz. Para tristeza de Bianca,
essa oportunidade deve demorar, já que os viajantes precisarão conviver com uma
definição atualizada de dólar. “A alta é estrutural. Um dos lados positivos é
que, em vez de viajar com maior frequência ao exterior, o brasileiro terá de
optar por um destino doméstico. Isso passa a movimentar o turismo e a economia
aqui, e não lá”, diz Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central. “O mais
importante não é o valor da moeda, mas sua estabilidade. O que é prejudicial
tanto para os consumidores como para toda a economia é a falta de
previsibilidade.”
Muito da tensão
provocada pela oscilação cambial vem do trauma sofrido pelos brasileiros quando
o real, então moeda forte pareada ao dólar, se desvalorizou abruptamente em
1999. Isso se deu com a decisão da equipe econômica do segundo governo de
Fernando Henrique Cardoso de flexibilizar o câmbio no país. Três crises
internacionais — a do México, a dos Tigres Asiáticos e, por fim, a da Rússia —
quase quebraram o Brasil, forçaram a liberação do câmbio e custaram o emprego
do então presidente do BC, Gustavo Franco. Nessa ocasião, o Banco Central
extinguiu as bandas cambiais, um mecanismo que permitia o controle da variação
do valor do dólar. Como resultado, a cotação da moeda americana disparou. “A
banda cambial nos fazia queimar as reservas internacionais, colocando dólares
no mercado para controlar a alta. À época, cometeu-se o erro de acabar com esse
mecanismo bruscamente, levando os investidores a retirar o dinheiro do país”,
afirma Jackson Bittencourt, coordenador do curso de economia da PUC do Paraná.
FIM DE UMA ERA – FHC, em 1999: a
flexibilização do câmbio desvalorizou o real (Sergio Lima/Folhapress)
Depois desse
episódio, a volatilidade do dólar passou a refletir o termômetro político. Em
2002, quando houve a sinalização de que o então candidato petista, Luiz Inácio
Lula da Silva, ganharia as eleições, os mercados ficaram em polvorosa. Pouco
antes da votação, em agosto, a moeda chegou a ser vendida com valor até 70%
superior ao do início daquele ano. No dia 10 de outubro, menos de uma semana
após a eleição, o dólar fechou em 3,99 reais — recorde detido por mais de uma
década. O motivo: na véspera do pleito a agenda econômica do ex-metalúrgico era
uma incógnita. O temor arrefeceu quando ficou claro que o novo presidente não
comprometeria as conquistas trazidas pelo real. Depois seguiram-se anos de
calmaria. Nem mesmo a crise financeira de 2008 fez o dólar se aproximar dos
valores de 2002. A bonança só acabou com a reeleição, em 2014, de Dilma
Rousseff — cuja desastrosa política econômica reverbera até hoje. Os gastos
excessivos e as intervenções diretas em bancos, em conjunto com a perspectiva
do impeachment, fizeram a cotação bater em 4,19 reais em setembro de 2015,
patamar que só foi quebrado neste ano.
No cenário atual, o
impacto da alta fica restrito a setores dolarizados da economia — como a
aviação comercial e as indústrias altamente dependentes de importações. Medidas
recentes como o teto de gastos, que impediu a gastança desenfreada do governo,
e a liberação dos preços de energia, somadas à desaceleração econômica global
causada pela guerra comercial entre Estados Unidos e China, afastam o risco de um
choque inflacionário no país nos moldes de antigamente. “O contágio de outros
setores tende a ser moderado e vagaroso”, diz André Braz, economista da
Fundação Getulio Vargas. A aposta de Paulo Guedes foi dura, mas, apesar de
choques e temores, o caminho trilhado até aqui está correto. Aquela viagem a
Nova York pode esperar.
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